As raízes da controvérsia na adaptação de The Last of Us

A segunda temporada de The Last of Us enfrentou uma onda de críticas por suas escolhas narrativas controversas e arcos de personagens polarizadores. Mas além das discussões superficiais sobre representatividade queer ou a aparência de Bella Ramsey, há preocupações mais profundas sobre como a série vem diluindo progressivamente seus personagens principais.

Muitos espectadores apontam uma queda de qualidade entre as temporadas, mas o que poucos percebem é que os problemas não surgiram do nada. As sementes da controvérsia já estavam plantadas desde a primeira temporada.

As escolhas narrativas que suavizaram Joel

Bella Ramsey como Ellie em The Last of Us

Photo: Liane Hentscher/HBO

O co-criador Craig Mazin tem o hábito de estruturar suas histórias em torno de um evento narrativo central. Em The Last of Us, esse evento é o assassinato de Joel (Pedro Pascal). Sua morte é prenunciada ao longo da primeira temporada através de personagens como Henry (Lamar Johnson) e Marlene (Merle Dandridge), figuras trágicas que sacrificam entes queridos pelo "bem maior" antes de morrerem.

Esses arcos preparam o terreno para a decisão climática de Joel sobre sacrificar Ellie (Bella Ramsey) na busca por uma cura para a infecção por Cordyceps. Quando os Fireflies tentam dissecar Ellie para estudar sua imunidade, Joel intervém violentamente, matando os médicos a sangue frio.

Embora essa escolha seja fiel aos jogos, a adaptação para TV toma caminhos diferentes para chegar lá. A tendência da série em explicitar o conflito interno de Joel, combinada com a decisão de Neil Druckmann de reinserir conteúdo cortado dos jogos para tornar a história mais simplista e moralmente palatável, acaba achatando a ambiguidade que tornou o jogo original tão impactante.

O preço da simpatia forçada

Bella Ramsey e Pedro Pascal em cena juntos

Photo: Liane Hentscher/HBO

A primeira temporada pinta Joel de forma muito mais simpática que o jogo. Desde o primeiro episódio, os roteiristas expandem o relacionamento de Joel com sua filha Sarah (Nico Parker), dando ao público mais tempo para se conectar com ela e entender seu vínculo. Esse investimento emocional é projetado para tornar a morte súbita de Sarah mais impactante, mas também deixa explícito tudo o que Joel pensa em sua luta interna sobre proteger Ellie.

Joel (Pedro Pascal) and Ellie (Bella Ramsey) hugging in The Last of Us season 2, episode 6

Photo: Liane Hentscher/HBO

No jogo, a falta de remorso de Joel é justamente o ponto: ele é um homem moldado pela dor que se agarra a uma segunda chance de salvar sua filha. Sua história não é um arco de redenção. A decisão de salvar Ellie não é motivada por novos traumas ou suavizada por fragilidade emocional - é um ato brutal e moralmente complexo que deixou jogadores debatendo por anos.

Ao adicionar camadas extras de contexto - o luto, os ataques de pânico, a dor paterna - os showrunners empurram o público a simpatizar com as decisões de Joel. Em vez de deixar os espectadores perturbados com sua capacidade de violência (como o jogo faz ao tê-lo matando dezenas de pessoas que apenas tentavam desenvolver uma cura), a série nos guia para justificar suas ações através de paralelos emocionais.

O que se perdeu no caminho

O jogo original é rico em momentos quietos e íntimos entre Joel e Ellie, pequenas cenas que constroem seu vínculo de forma orgânica. A série, no entanto, frequentemente deixa esses momentos em segundo plano para expandir personagens periféricos como a mãe de Ellie (que não aparece no jogo) ou Kathleen Coghlan, uma personagem original que espelha a história de vingança de Tess (que foi cortada do jogo por ser considerada irrealista).

Essas adições servem principalmente para reforçar paralelos temáticos com a decisão de Joel de salvar Ellie, mas a execução parece pesada, e a dinâmica entre os protagonistas deixa de estar no centro da história. A série reestrutura ou reescreve cenas originais para sinalizar temas de perda e sacrifício de forma mais explícita, removendo a ambiguidade que tornou a escolha final de Joel tão complexa moralmente.

E a segunda temporada continua esse padrão com Ellie, suavizando sua caracterização ao reduzir suas tendências violentas em favor de uma representação mais claramente simpática. Parece que Mazin e Druckmann estão ativamente lixando as arestas mais ásperas e desafiadoras da narrativa dos jogos - talvez para evitar a reação negativa que seguiu The Last of Us Part 2. Mas ao fazer isso, arriscam diminuir justamente o que fez a história ressoar em primeiro lugar: sua recusa em oferecer respostas fáceis.

A complexidade perdida na adaptação

O que torna a jornada de Joel nos jogos tão fascinante é justamente sua falta de arrependimento explícito. Suas ações falam por si - a violência é parte integrante de quem ele se tornou, não um desvio de caráter. Na série, porém, vemos um Joel que constantemente demonstra remorso, que tem ataques de pânico e pesadelos. Enquanto isso humaniza o personagem, também remove camadas cruciais de sua complexidade moral.

Lembra da cena em que Joel tortura dois homens para obter informações sobre Ellie? No jogo, essa sequência é brutal e sem justificativas morais - Joel faz o que precisa fazer, ponto final. Na série, a cena é intercalada com flashbacks de Sarah, criando uma justificativa emocional para sua violência. Essa diferença pode parecer sutil, mas muda completamente como interpretamos o personagem.

O dilema de adaptar uma mídia interativa

Parte do problema pode estar na natureza diferente das mídias. Nos jogos, o jogador é Joel durante horas de gameplay, testemunhando sua transformação através da mecânica de jogo - como você protege Ellie durante combates, como reage a situações de perigo. Essa identificação orgânica permite que o jogo apresente um Joel mais sombrio sem alienar completamente o jogador.

A série, por outro lado, precisa criar empatia através de meios mais tradicionais - diálogos expansivos, expressões faciais, backstories detalhados. O resultado é uma versão de Joel que, embora ainda complexa, perde parte de sua essência mais controversa. E isso tem consequências diretas para como percebemos sua decisão final.

As implicações para a segunda temporada

Essa abordagem mais suavizada se estende à segunda temporada, especialmente no tratamento de Ellie. No jogo The Last of Us Part II, Ellie é uma força da natureza - violenta, obstinada, e moralmente ambígua em sua busca por vingança. Sua jornada é desconfortável e desafiadora, exatamente como deveria ser.

Já na série, há sinais de que os showrunners estão preparando o terreno para uma versão mais palatável dessa história. Cenas que no jogo mostravam Ellie agindo com crueldade calculada são amenizadas ou recontextualizadas. Seu relacionamento com Dina parece receber mais ênfase do que sua espiral descendente, possivelmente para equilibrar a escuridão da narrativa com momentos mais leves.

Isso levanta questões interessantes: até que ponto uma adaptação deve fidelizar o material original quando esse material é intencionalmente desafiador? The Last of Us sempre foi sobre personagens falhos tomando decisões questionáveis - suavizar essas arestas pode, ironicamente, tirar o impacto emocional que os criadores tanto buscam.

O paradoxo da aceitação mainstream

Há uma ironia inegável aqui. The Last of Us conquistou aclamação crítica precisamente por se recusar a seguir convenções narrativas tradicionais. Agora, ao ser adaptado para um meio mais mainstream, parece estar cedendo justamente às pressões que o jogo original desafiou.

Veja o tratamento dado a Bill e Frank na primeira temporada. Enquanto no jogo seu relacionamento é sugerido através de detalhes ambientais e uma nota trágica, a série expande sua história em um episódio quase autônomo. Embora emocionalmente poderoso, esse arco também serve para "compensar" a escuridão do resto da narrativa com um momento genuinamente doce - algo que o jogo nunca fez.

Essa tendência se intensifica na segunda temporada, onde histórias secundárias recebem mais espaço para desenvolver temas de redenção e perdão, possivelmente preparando o público para o final controverso da narrativa. Mas ao tentar tornar a jornada mais palatável, a série corre o risco de diminuir o impacto daquilo que tornou a história original tão memorável: sua recusa em oferecer consolo fácil.

Com informações do: Polygon