Uma experiência universal sobre ser criança
Uma das magias da arte — ou talvez do cérebro humano — é transformar algo extremamente específico e pessoal em algo universal. Despelote é um jogo autobiográfico e semidocumental sobre ser criança no Equador durante a primeira classificação bem-sucedida do país para a Copa do Mundo de 2002. Mas também é simplesmente um jogo sobre a totalidade da infância: brincadeiras, tédio, obsessões, criação de mitos, a visão do mundo adulto e como esse mundo molda quem somos. E é lindo.
Memórias de Quito em 2001
Criado por Julián Cordero e Sebastian Valbuena, Despelote é baseado na infância de Cordero na capital equatoriana, Quito, e sua relação intensa — como a de todo o país na época — com o futebol. É uma obra sobre memórias, mas a memória é traiçoeira. Em determinado momento do jogo, Cordero revela em narração que a classificação para a Copa do Mundo foi sua primeira lembrança, aos quatro anos. Sua memória é vívida, mas ele deseja que fosse mais ampla — então, no jogo, ele tem oito anos. Despelote é a memória que ele gostaria de ter.
E que memória! O jogo é uma experiência narrativa em primeira pessoa curta (cerca de duas horas) e enganosamente simples, disponível no Steam, Xbox e PlayStation (com versão para Switch em breve). Como Julián, você explora sua casa, a escola e o parque local, chutando uma bola com amigos. Participa de um casamento, joga balões nos ventiladores de teto, espia conversas dos adultos e brinca de esconde-esconde com a irmã. Sua mãe te arrasta para lugares, manda você sair, pede para ficar em casa.

Futebol como linguagem universal
É o final do verão de 2001 e toda Quito está obcecada com os jogos de classificação da seleção equatoriana. Mas os jogos não são o foco — são o pano de fundo que permeia a cidade: imagens passam nas TVs das lojas enquanto adultos discutem estratégias e placares.
Para Julián, criança, o futebol é mais tátil. Ele chuta. Cordero e Valbuena criaram um sistema de controle em primeira pessoa sensacionalmente fluido e intuitivo, com dribles automáticos que ainda exigem habilidade (especialmente ao correr) e chutes executados com o analógico direito. O mesmo sistema funciona no jogo dentro do jogo que Julián joga em casa: Tino Tini's Soccer 99, homenagem ao clássico britânico Dino Dini's Soccer (1993).
Essas mudanças de perspectiva entre o "jogo real" e o "jogo dentro do jogo" são usadas de forma brilhante para borrar as linhas entre autor, jogador e personagem. Assim como Tino Tini's Soccer invade a vida do jovem Julián, Despelote — um jogo que o Julián adulto fez sobre sua vida — invade a nossa.

Quito como personagem
Apesar do escopo modesto, a Quito de 2001 em Despelote é envolvente e totalmente realizada. Visualmente, usa modelos 3D de baixa poligonalidade em tons pastéis granulados, como uma impressão de zine, com figuras 2D em preto e branco representando pessoas e objetos importantes — como uma foto desfocada com anotações infantis sobre o que realmente importa.
O design de áudio é excepcional, construindo a cidade como uma tapeçaria de ruídos ambientes e diálogos sobre a vida no Equador entre crise financeira e a chance de glória esportiva. O resultado é impressionista, mas também genuinamente realista — poucos jogos conseguem esse equilíbrio.
A infância como território de exploração
O que torna Despelote tão especial é como ele captura aquela sensação única da infância onde tudo — desde uma poça d'água até uma conversa de adultos — pode se transformar em aventura. O jogo não tem objetivos claros ou missões tradicionais; em vez disso, oferece um playground de possibilidades. Você pode passar minutos apenas chutando uma bola contra a parede, observando como o som ecoa diferente em cada material, ou tentando decifrar os fragmentos de conversas dos adultos sobre política e futebol.
Essa liberdade é intencional. Cordero mencionou em entrevistas que queria recriar aquela sensação de tempo dilatado que só as crianças experimentam, onde uma tarde pode conter universos inteiros. E consegue: há momentos em que você está simplesmente deitado no chão da sala, ouvindo o rádio e vendo as nuvens passarem pela janela, e isso parece tão significativo quanto qualquer 'evento' tradicional de videogame.
Os detalhes que constroem um mundo
Os desenvolvedores preencheram Despelote com pequenos toques que transformam o jogo em uma cápsula do tempo. As propagandas de TV da época, os posters nas paredes, até mesmo o jeito que as pessoas se vestem — tudo foi meticulosamente pesquisado para recriar o Equador de 2001. Mas o que realmente impressiona são os elementos interativos que não servem a nenhum propósito além de reforçar a veracidade do mundo: você pode abrir todas as gavetas da cozinha da avó de Julián (cheias de utensílios aleatórios), folhear álbuns de fotos da família, ou tentar decifrar as anotações no caderno escolar.
Essa atenção aos detalhes se estende à representação das relações familiares. A dinâmica com a irmã mais nova, por exemplo, oscila entre a rivalidade típica e momentos genuínos de cumplicidade. Em uma cena memorável, ela insiste em brincar de 'escola' com você, assumindo o papel da professora — uma experiência que qualquer pessoa com irmãos mais novos reconhecerá imediatamente.
Futebol como metáfora
Embora o futebol permeie todo o jogo, Despelote vai muito além do esporte. O que Cordero e Valbuena capturam brilhantemente é como, para uma criança, o futebol pode ser tudo: linguagem, ritual de passagem, válvula de escape, até mesmo lente para entender o mundo adulto. As partidas improvisadas no parque não são sobre vencer ou perder, mas sobre pertencimento — e sobre como o esporte pode unir pessoas de diferentes origens, mesmo que temporariamente.
Há uma cena particularmente poderosa onde Julián, após ouvir os adultos discutirem sobre a crise econômica, tenta entender o conceito abstrato de 'dinheiro' através do futebol: se os jogadores são caros, ele raciocina, talvez possam ser comprados com figurinhas ou bolas de gude. Essa inocência frente a problemas complexos é um dos muitos momentos onde Despelote mostra sua profundidade emocional.
O peso (e a leveza) da nostalgia
O que poderia ser uma simples viagem sentimental se transforma em algo mais complexo graças à honestidade do jogo. Despelote não romantiza a infância — mostra seus medos, frustrações e tédios junto com as alegrias. Há momentos de solidão, como quando Julián fica trancado em casa enquanto os amigos brincam lá fora, ou quando tenta (e falha) em acompanhar as conversas dos meninos mais velhos.
Mas também há uma celebração daquela resiliência infantil que nos faz superar pequenas tragédias cotidianas com facilidade. Um minuto você está devastado porque derrubou seu sorvete; no seguinte, já está completamente absorvido por uma nova descoberta. Essa oscilação emocional é capturada com uma naturalidade rara em jogos, sem didatismo ou explicações excessivas.
Com informações do: Polygon