Uma jornada inesperada no mundo dos RPGs

Eu nunca havia entendido verdadeiramente o que era roleplaying até me deparar com um jogo estranho e obscuro dos anos 90. Não era um título famoso como Final Fantasy ou Chrono Trigger, mas sim uma produção menor, quase esquecida pelo tempo, que prometia uma experiência única: transformar o jogador lentamente em um inseto.

Entomorph gameplay showing player entering house on island

(Image credit: Cyberlore Games)

A estranha mecânica de transformação

O que começou como um RPG tradicional logo revelou sua peculiaridade principal: conforme o personagem avançava na história, ele adquiria características de inseto. Primeiro eram pequenas mudanças - uma coceira nas costas, uma sensação estranha nos membros. Depois, as transformações se tornavam mais evidentes:

  • Pele começando a endurecer em um exoesqueleto

  • Olhos compostos substituindo gradualmente a visão humana

  • Apêndices extras crescendo nas costas

  • Alterações na percepção de cores e formas

    Entomorph gameplay showing Squire Warwick exploring a village

(Image credit: Cyberlore Games)

O jogo não apenas mostrava essas mudanças visualmente, mas também as incorporava na jogabilidade. A interface se adaptava, tornando certas ações mais difíceis enquanto outras se tornavam possíveis. Era desconcertante, mas fascinante.

Roleplaying além da superfície

Foi essa imersão gradual que me fez compreender o verdadeiro significado de roleplaying. Não se tratava apenas de interpretar um personagem pré-definido, mas de vivenciar uma transformação fundamental na própria natureza desse personagem. O jogo me forçou a reconsiderar:

  • Como me relacionar com NPCs que agora me viam como uma criatura

  • Quais habilidades valiam a pena desenvolver à medida que meu corpo mudava

  • Se deveria resistir à transformação ou abraçar minha nova natureza

    Entomorph characters contemplating giant squid on island. One of them is saying "We are saved!"

(Image credit: Cyberlore Games)

Em muitos RPGs tradicionais, o desenvolvimento do personagem é linear e previsível. Aqui, cada escolha parecia ter consequências mais profundas, pois afetava não apenas minhas estatísticas, mas minha própria essência no jogo.

O legado de experiências incomuns

Esse título obscuro, que muitos considerariam apenas um "jogo B", acabou se tornando minha referência para o que roleplaying pode oferecer. Ele demonstrava como mecânicas incomuns podem criar conexões emocionais inesperadas. Enquanto jogos modernos buscam gráficos realistas e mundos abertos, às vezes é nas experiências mais estranhas que encontramos as lições mais valiosas sobre imersão e narrativa interativa.

As sutilezas da narrativa que passam despercebidas

O que mais me impressionou, ao revisitar o jogo anos depois, foram as camadas narrativas que eu não havia percebido na primeira jogatina. Os desenvolvedores inseriram pistas sutis sobre a transformação desde os primeiros minutos - uma mosca zumbindo aqui, uma teia esquecida ali. A trilha sonora, que parecia genérica no início, gradualmente incorporava sons de asas batendo e patas arrastando.

E os diálogos! NPCs que inicialmente pareciam apenas dar missões banais, na verdade faziam comentários premonitórios sobre 'mudanças' e 'metamorfoses'. Alguns até reagiam diferente conforme meu personagem se transformava, criando uma rede de relacionamentos dinâmica que poucos jogos da época ousavam tentar.

Desafios de design em uma premissa tão incomum

Conversando anos depois com um dos desenvolvedores em uma convenção de jogos retrô, descobri os enormes desafios técnicos que enfrentaram. Como representar visualmente uma transformação gradual em hardware limitado? A solução foi engenhosa:

  • Usar paletas de cores que mudavam sutilmente a cada capítulo

  • Animções de sprite que se tornavam mais 'esticadas' e angulares

  • Efeitos sonoros distorcidos para simular a mudança de percepção

  • Interface do menu que gradualmente ficava mais difícil de ler

O desenvolvedor me contou que testaram versões onde a transformação era muito rápida, mas os jogadores rejeitaram - era a lentidão do processo que criava o desconforto e fascínio característicos da experiência.

Influências inesperadas na indústria

Embora o jogo tenha sido um fracasso comercial na época, sua influência pode ser rastreada em títulos modernos. Elementos de sua abordagem à transformação aparecem em:

  • Jogos de survival horror onde o personagem perde gradualmente a sanidade

  • RPGs que alteram mecânicas baseadas nas escolhas morais do jogador

  • Narrativas que usam a interface como parte da história (como jogos de glitch art)

Curiosamente, o designer-chefe do jogo acabou trabalhando anos depois em um grande estúdio, onde implementou sistemas similares - embora muito mais polidos - em um RPG aclamado pela crítica. Quando perguntei se aquela experiência com o jogo dos insetos influenciou seu trabalho posterior, ele apenas sorriu misteriosamente.

O paradoxo da transformação digital

O que torna essa experiência tão memorável é o paradoxo central: enquanto meu personagem perdia sua humanidade no jogo, eu como jogador me sentia mais humano do que nunca. A angústia das escolhas, o desconforto das mudanças, a curiosidade mórbida de ver até onde a transformação iria - tudo isso criava uma conexão emocional que poucos jogos 'normais' conseguiam.

E talvez aí esteja a lição mais valiosa: às vezes são as premissas mais estranhas que nos fazem refletir sobre nossa própria condição. Enquanto controlava uma criatura que não era mais humana, mas ainda não era totalmente inseto, me vi questionando: O que realmente nos define como humanos? Até que ponto podemos mudar antes de nos tornarmos outra coisa? Perguntas pesadas para um simples jogo dos anos 90.

Com informações do: PC Gamer